Somos curadores natos. Dentre inúmeras possibilidades, escolhemos para nossas vidas tudo o que nos importa. Num piscar de olhos, nos damos conta de que nossa curadoria passa pelos alimentos que comemos, pelos nomes de nossos filhos, pelas roupas que vestimos, até pelas flores que plantamos em nosso jardim. Embora façamos isso no piloto automático, essa curadoria vem de dentro, vem da alma. Então, dificilmente erramos. Nós nos abastecemos com o que nos faz bem.
No entanto, nosso cérebro vem sendo desafiado no processo natural de curadoria: nossa consciência suspeita se estamos, de fato, escolhendo o melhor caminho. Esse é um dos motivos das angústias da nossa época.
Trata-se da demasia, aliada à atual complexidade do mundo contemporâneo. A demasia pode ofuscar nosso movimento de curar e a complexidade, nos paralisar. Vivemos na era no excesso, do muito, do exagero. E nem me refiro à hipérbole da bela interpretação de Cazuza “eu nunca mais vou respirar, se você não me notar; eu posso até morrer de fome, se você não me amar”; antes fosse.
Hoje, estímulos infindáveis das mais diversas facetas roubam a cena: conteúdos, informações, conexões, formatos, discussões, estética, consumo, tecnologias. Opções quase que infinitas nos deixam à deriva na escolha. Arrisco dizer que a demasia tem se transformado num estilo de vida.
Uma questão que nos desafia é que esse movimento tem nos presenteado com uma estonteante superficialidade. Tudo é muito, porém muito é básico, muito é raso. Queremos tudo e corremos o risco de ter quase nada. Qual livro ler, qual série assistir, qual personalidade seguir, em qual tema me aprofundar, qual expertise desenvolver?
A superficialidade da demasia do nosso tempo nos pede um esforço adicional: como nos surpreender com movimentos que já não causam mais impacto? Não que eles sejam vazios em sua essência (às vezes, até são), mas não alcançam mais o efeito chocante que esperamos em nossas vidas, a cada minuto. Estamos nos anestesiando com a demasia. Estamos indiferentes ao pouco, que significa muito. Será que estamos deixando passar o detalhe que acalenta e transforma?
O desafio da curadoria na era de quantidades e qualidades sem fim se estende para o nosso dia a dia, no universo corporativo, quando falamos de aprendizagem. A responsabilidade de curar o que há de melhor e relevante é cada vez mais posta à prova. Tempo escasso versus opções diversas que prometem dar sentido ao mundo. Como aprendizes e como responsáveis pelos movimentos de aprendizagem, às vezes perdemos a direção. Como curadores na nossa aprendizagem e das nossas organizações, corremos o constante risco da armadilha do piloto automático. É um risco para o nosso desenvolvimento profissional e das organizações. Mudanças constantes e inesperadas, desafios cada vez mais complexos, novas relações de trabalho, diferentes desenhos organizacionais e tantas outras variáveis exigem curadorias de ponta, aquela curadoria que não olha apenas para a superfície do mar, mas enxerga recortes do que transita ao seu fundo.
Talvez devêssemos desafiar a maneira de pensar a curadoria. Estamos preparados para fazer a curadoria do nosso tempo? Quais variáveis importam para pensá-la? Que movimentos realizamos nas últimas décadas e como a curadoria acompanhou tudo como diferencial para nossas vidas? Como concatenar as necessidades que antecedem nossas escolhas? Parar, pensar, expandir a consciência, trazer para o coração e para a razão aquilo que importa, que vai nos direcionar àquela curadoria que traz o singelo e o nobre, que permite grandes conexões para o aprendizado, que permite que criemos nossos nexos, que possa adentrar os sentidos, aquecer a alma e transformar o aprendizado em sabedoria.
Daniella Russo é Diretora de Relacionamento com Clientes e Operações da Bossa.etc e Member Board of Directors AfferoLab.