Nos textos anteriores, aprendemos que a memória é o processo de codificação, armazenamento e evocação de experiências e conhecimentos, sendo responsável por unir nosso passado e nosso presente, contribuindo para a construção de um senso de identidade e continuidade. Agora, vamos falar como nosso cotidiano interfere em nossa capacidade de aprender e reter informações.
As memórias, como vimos, são formadas por disparos de neurônios, que criam ou modificam redes de conexões. À medida que um bebê se desenvolve e explora o mundo à sua volta, por exemplo, ligações neuronais vão sendo formadas. Cada nova experiência que ele tem com objetos e pessoas se somam às anteriores ou modificam os registros pré-existentes dessas vivências, gerando também novas conexões e modificações das anteriormente constituídas. À medida que adquire novas habilidades, o processo possibilita que a criança desenvolva novas formas de se relacionar com objetos ou pessoas.
O cérebro vai se aprimorando conforme é exposto a experiências e informações. Da mesma forma a memória: ela, assim como as demais capacidades cognitivas e motoras, dependem criticamente das experiências. Tudo o que experimentamos, vivenciamos e aprendemos contribui para a composição dessa rede complexa - responsável por tudo o que somos capazes de fazer e pensar.
As experiências são fundamentais durante a infância, uma vez que contribuem para a construção do nosso aparato neurológico. Quando adultos, nossas experiências e, especialmente, sua diversidade e complexidade, têm função determinante em nossa capacidade de lidar com o mundo que nos cerca, tornando nossas redes neurais mais plásticas e capazes de se moldarem a diferentes situações.
A riqueza das experiências vividas nos permite construir um repertório variado de habilidades, o que contribui significativamente para a compreensão e a construção de associações entre informações novas e antigas - aspecto fundamental para que haja consolidação do conteúdo na memória de longo prazo.
Algumas áreas do cérebro não estão totalmente prontas antes dos 20 anos de idade. É o caso da memória: a carência de uma formação completa das regiões envolvidas no processo nos impede de registrar as experiências vividas ainda pequenos. Chamamos isso de “amnésia infantil”. A amnésia infantil não é uma característica apenas dos humanos, mas uma característica comum de animais cujo cérebro mantém o desenvolvimento depois do nascimento. O que isso tem a ver com o funcionamento da memória?
Já se sabe que bebês podem e constroem memórias, porém, sua capacidade de reter as informações por longos períodos está incompleta e só se aprimorará com o tempo. Um bebê de seis meses, por exemplo, consegue repetir uma tarefa de imitação ao ser exposto novamente a ela 24 horas depois tê-la aprendido. No entanto, essa habilidade não se mantém por 48 horas. Bebês com nove meses recordam-se da tarefa por até três meses.
Se os primeiros anos de vida são fundamentais para a formação de conhecimentos e habilidades cruciais para o bom desenvolvimento cerebral do indivíduo, a puberdade é outra fase peculiar na evolução humana. As mudanças biológicas típicas dessa fase são acompanhadas por alterações do funcionamento cerebral que impactam diretamente em algumas de nossas capacidades. Uma delas é a memória. Somos mais capazes de lembrar detalhes de eventos ocorridos nessa época do que durante a infância. Alguns estudos indicam que adultos a partir dos 30 anos têm mais memórias de sua adolescência do que de qualquer outra fase da vida -- fenômeno chamado de “aprimoramento de lembrança” (tradução livre para “reminiscence bump”).
As principais teorias relacionam esse fenômeno com o fato de que a adolescência é a fase da vida em que construímos um senso de identidade, o que permitiria formar memórias mais robustas e relevantes. Quer dizer: tendemos a favorecer lembranças que reforçam a ideia que temos de nós mesmos.
A memória, assim como as demais funções cognitivas, está sujeita ao nosso próprio desenvolvimento, programado geneticamente, mas também influenciada pelo ambiente em que estamos inseridos, capaz de nos proporcionar mais ou menos experiências. Mas outros fatores interferem em nossa capacidade de reter informações e aprender.
Na prática clínica, as causas mais frequentes de alteração da memória são as “alterações nervosas funcionais”, ou seja, mudanças não orgânicas, mas associadas ao funcionamento geral do indivíduo. Uma pessoa deprimida ou ansiosa pode ter dificuldade de se lembrar das coisas, por exemplo. Quando compreendemos que nosso cérebro é feito de neurônios que se comunicam quimicamente entre si, entendemos que a ausência ou redução desses mensageiros químicos pode ocasionar o mau funcionamento do sistema como um todo.
Guardamos mais os eventos emocionalmente relevantes, do que os banais ou quotidianos. Eventos traumáticos podem ser armazenados de maneira exacerbada, contribuindo para quadros como o Transtorno do Estresse Pós Traumático (quando as lembranças de um evento traumático reverberam com maior frequência e intensidade).
Há uma forte relação entre as emoções e a memória. Nos recordarmos de forma mais detalhada de eventos negativos do que de positivos. Talvez esse registro nos ajude a evitar situações potencialmente perigosas - ou de cometer os mesmos erros que levaram à experiência ruim. Por outro lado, quando nos lembramos de algum fato que nos fez feliz, tendemos a ser generalistas, incorporando fatos vividos e outros gerais – condizentes com o que desejamos. Quem sabe esse seja um mecanismo da memória que nos ajuda a manter uma perspectiva positiva da vida.