As fronteiras entre carreira e vida pessoal estão cada vez mais fluidas, e, nesse processo, o trabalho corre o risco de se tornar o terceiro elemento em uma relação a dois. Afinal, estresse no escritório, home office e chefe que não tem hora para mandar mensagem podem arruinar um relacionamento? Em consultório, a psicóloga clínica Ana Canosa nota um claro aumento das reclamações sobre estresse profissional e seu impacto na vida afetiva. Nesta entrevista à Et cetera, a terapeuta sexual e apresentadora do podcast Sexoterapia, do Universa/UOL, conta como casais e pessoas solteiras podem reconhecer o problema e quebrar o ciclo.
A rotina profissional tem interferido cada vez mais nos relacionamentos amorosos?
O home office deixou os limites entre vida pessoal e trabalho ainda mais embaralhados. É muito ruim não se arrumar para sair, não ter as experiências da rua e poder voltar para casa e trocar tudo isso com o parceiro. Lá fora, a gente busca inspiração e criatividade. É interessante que haja essa energia circulando. É bom se sentir desejada na rua, mas é incrível voltar para casa e encontrar alguém que você ama.
O excesso de trabalho também entra nessa equação?
Não é normal receber mensagens do chefe às 10 da noite. Isso cria ansiedade, prejudica a privacidade e atrapalha o momento de descanso e afeto com a família. A ansiedade impede que você esteja 100% presente no momento de prazer. Com o trabalho exaustivo, as pessoas têm pouco tempo para cuidar das suas relações em casa. Falta tempo para conversar, rir, transar, fazer atividades juntos. E o trabalho pode, muitas vezes, servir de justificativa para relações que já não vão bem. Isso acontece quando a pessoa deposita tempo e energia excessivos no trabalho de propósito, porque ele vai lhe trazer satisfação, dinheiro etc., mas também para passar menos tempo em casa, assim evita uma conversa difícil, um conflito com o parceiro, e ignora os problemas da relação.
Como perceber que a vida a dois está sendo prejudicada pelo trabalho?
Os sintomas óbvios são a falta de energia física e a irritabilidade. O problema fica claro quando sua vida familiar e afetiva deixa de ser vista como um espaço de felicidade e troca e se torna mais um dever. O sexo não pode virar obrigação, algo que está atrapalhando a rotina.
Além do estresse, outros fatores relacionados ao escritório podem minar a vida a dois?
Com tantas viagens, eventos e happy hours, as pessoas acabam conhecendo muita gente no trabalho, e isso gera questões relativas a ciúme e desejo sexual. Boa parte das traições acontece com alguém do trabalho.
É melhor não falar de trabalho em casa para separar carreira de vida pessoal?
Pelo contrário, é importante trocar as experiências do trabalho com o parceiro porque o saudável é balancear a vida doméstica com a profissional. É legal chegar em casa e trocar ideias e histórias, afinal o trabalho é fonte essencial de criatividade. A profissão ocupa boa parte do dia e é fonte de prazer e estímulos, e, sem diálogo, pode virar o “terceiro” da relação.
Como o casal pode tentar blindar a vida sexual e afetiva dessas questões?
Uma maneira é estabelecer limites claros para o tempo de responder a mensagens de trabalho em casa. O casal precisa organizar a semana para achar na rotina um tempo a dois e proteger esse espaço. Pode ser o café da manhã todos os dias, ou a hora do jantar, ou o banho. Algum momento do dia precisa ter. É imprescindível o momento diário com o contato físico. O afago, o toque, o abraço, o passar a mão nas costas, a “conchinha” vendo um filme no sofá. É preciso ter pequenas rotinas de prazer e afeto. Quando você sente que o outro está presente e cuidando de você de maneira calorosa, você quer voltar para casa.
O estresse profissional afeta a vida sexual de homens e mulheres de maneira diferente?
As mulheres tendem a perder a libido, o interesse pela prática sexual. Já os homens percebem o estresse na ansiedade da performance, que gera uma disfunção erétil ou uma ejaculação precoce.
Mulheres que não contam com a ajuda do parceiro nas tarefas domésticas sofrem mais com o estresse?
Com certeza. Estamos em uma sociedade de mulheres exaustas. Por isso, a divisão de tarefas em casa é essencial. A mulher não pode voltar esgotada do trabalho e ainda ter que cuidar da casa, enquanto o homem descansa. Inclusive, pesquisas já mostraram que mulheres que têm um parceiro que divide as tarefas domésticas se sentem mais felizes e satisfeitas dentro da relação e são sexualmente mais ativas.
E no caso dos solteiros? Como identificar que o estresse está prejudicando a vida afetiva?
Por causa da exaustão do trabalho, pessoas solteiras sentem preguiça de sair de casa e de ter encontros reais. Conversam muito nos aplicativos de encontro, mas nunca marcam algo para valer. Existe, inclusive, o burnout afetivo, que acontece quando a pessoa fica tão presa naquela experiência de dar likes que acaba se sentindo muito ansiosa, e isso esgota sua energia e vontade de conhecer alguém no mundo real.
Algumas pessoas optam por se dedicar apenas à carreira, negligenciando a vida amorosa. É saudável passar um período sem pensar em sexo e relacionamento?
Sim, desde que seja uma decisão muito consciente. É legítimo priorizar 100% a carreira durante uma fase, mas é preciso ficar atento para perceber se essa vida com zero sexo e afeto não está trazendo prejuízos. Um dos sintomas é isso gerar uma preguiça constante de ver amigos. A pessoa também não pode ficar cheia de manias, ensimesmada, ou abrir mão de todos os compromissos familiares.
A entrevista com a terapeuta sexual Ana Canosa foi publicada na edição 09 da revista Et cetera. Leia aqui.