Esse é o primeiro episódio do quadro “Neuro ou Neura”. Aqui, vamos tratar de assuntos polêmicos do nosso dia a dia, que geram dúvidas sobre respaldo científico. Antes de embarcar nessa viagem inaugural, que tal uma pequena introdução sobre a confiabilidade das informações disponíveis hoje em dia? Graças à velocidade da disseminação de informações na internet, uma notícia, seja ela verdadeira ou fake news, alcança rapidamente milhões de pessoas. De uma forma ou de outra, somos influenciados por essas informações, embora algumas delas não tenham qualquer comprovação real. Mas como saber se uma informação é confiável?
O projeto EducaMídia, criado pelo Instituto Palavra Aberta em parceria com o Google.org, elencou algumas formas de nos mantermos atentos à confiabilidade das nossas fontes de informação. Algumas perguntas podem nos ajudar a filtrar melhor essas informações, tais como: Quem está por trás desse dado? O autor apresenta evidências? As evidências se sustentam? São frequentes os artigos que citam fontes secundárias, como dicionários e artigos não acadêmicos, mas que não mencionam as fontes primárias (documento histórico, estudo científico original ou mesmo um registro direto do evento por quem o testemunhou ou vivenciou). Se a sua busca não puder te levar à fonte primária, suspeite!
Além disso, procure analisar com senso crítico as informações que recebe: avalie a possibilidade de haver argumentos contrários, descubra o que se sabe sobre o autor da publicação (inclusive possíveis interesses comerciais e/ou políticos envolvidos), cheque as informações em outras fontes, especialmente aquelas que se mostrem mais equilibradas e aprofundadas, e reflita sobre o contexto em que essa informação foi gerada e publicada. Enquanto isso, nosso “Neuro ou Neura” pode te ajudar a conhecer e avaliar melhor alguns temas!
Nossa primeira checagem vai explorar a Programação Neurolinguística (PNL). A abordagem surgiu na Califórnia, por volta de 1974. Foi criada por um grupo de estudantes de pós-graduação, mestrandos e doutorandos, liderados pelo linguista John Grinder, pelo então estudante de psicologia Richard Bandler e pelo psicólogo e professor Frank Pucelik.
Os criadores da abordagem se basearam em aspectos conhecidos do funcionamento humano (processamento sensorial, processamento linguístico e emissão de comportamento) e estabeleceram o que chamaram de “modelagem” desse funcionamento. Essa modelagem consiste no processo de desvendar e replicar padrões de linguagem e comportamento de indivíduos que sejam experts em uma determinada atividade. Os padrões observados na análise desses experts poderiam ser utilizados em contextos pessoais (terapêuticos) e profissionais, numa espécie de “reprogramação” que trouxesse melhores resultados a quem se submete ao processo. Dessa forma, a PNL é vista como uma abordagem da comunicação e do desenvolvimento pessoal focada em como o indivíduo organiza os próprios pensamentos, sentimentos e linguagem.
Considerando o uso da PNL como proposta psicoterapêutica, seus praticantes definem sua base teórica em considerações “neurobiológicas, fenomenologicamente sistêmicas e metateóricas”. Nesse contexto, o profissional recorreria primeiramente às palavras para manipular pensamentos e processos sensoriais, visando promover mudanças no comportamento. Os profissionais envolvidos na criação dessa metodologia acreditavam em sua aplicabilidade em diferentes contextos de vida, e um marketing agressivo foi utilizado para disseminá-la e comercializá-la. Logo surgiram críticas a aspectos éticos, afirmações autorreferentes e ausência de estudos que corroborem essas afirmações.
Em 2015, pesquisadores croatas se debruçaram sobre 426 estudos sobre PNL realizados nas últimas quatro décadas. Todos os trabalhos avaliados na metanálise (técnica estatística que combina resultados provenientes de diferentes estudos) envolviam o uso da técnica com abordagem psicoterapêutica em pessoas com sintomas ansiosos, fobias, depressão, alergias e enjoos matinais. Do total, 350 estudos foram excluídos por não mencionarem a aplicação da técnica em psicoterapia. E, dos 76 restantes, 64 foram cortados por população, intervenção ou desenho de estudo inadequados ao que se pretendia medir (17 deles não apresentavam dados que sustentassem as conclusões descritas).
Os 12 estudos remanescentes após a triagem inicial traziam resultados que sustentam o uso da técnica na abordagem psicoterapêutica, mas envolviam amostras pequenas (alguns com apenas 12 sujeitos, o que não pode ser considerado como representativo de qualquer população). Além disso, esses pesquisadores concluíram que, embora esses 12 estudos tenham mostrado eficiência da Programação Neurolinguística no contexto clínico, a ausência ou escassez de estudos observacionais e experimentais ou ensaios randomizados (considerados de melhor qualidade para investigação clínica) dedicados a avaliar a validade da PNL como estratégia de intervenção clínica torna os estudos encontrados insuficientes para que se recomende a PNL neste contexto.
Uma revisão sistemática realizada em 2018 por pesquisadores da Universidade de Derby, no Reino Unido, abordou o uso da PNL no contexto organizacional. Seus resultados evidenciaram as mesmas preocupações da metanálise de 2015, acrescidas de aspectos como conclusões superestimadas ou argumentos insuficientes para respaldar a eficácia da PNL.
Nesse momento histórico em que vivemos, é importante aproveitar temas como esse para discutir o papel da ciência em oferecer suporte a algumas práticas. Metodologias e técnicas, especialmente aquelas voltadas ao desenvolvimento humano, requerem estudos que abordem o indivíduo em sua complexidade, com rigor metodológico que garanta a relação de causa e efeito nas aplicações dessas técnicas. A PNL se mostrou eficaz no tratamento de alguns quadros citados nos estudos como “psicossociais”, assim como também promoveu mudanças em grupos e pessoas no ambiente organizacional. Mas é importante ressaltar que a escassez de pesquisas que garantam uma causalidade direta entre a aplicação da PNL e as mudanças promovidas pode nos levar a criar correlações equivocadas. Supomos que boa parte da população que não adoeceu por covid-19 desde o início da pandemia tenha ingerido água diariamente. Sem o devido rigor e a consideração de outros fatores nesta equação, poderíamos erroneamente afirmar que a água é tratamento preventivo contra o coronavírus, certo?