Apagamentos são definitivamente mais cruéis do que cancelamentos. A moda de falar sobre o cancelamento de pessoas nas redes sociais já ficou ultrapassada, visto que a discussão se dissipou com a mesma velocidade com que se popularizou. Não que os cancelamentos tenham deixado de acontecer, mas falar sobre o conceito já deixou de ser novidade, uma vez que ganhou status normativo. Pessoas são canceladas constantemente sem que possamos fazer muito a respeito. Apagamentos, por outro lado, acontecem na penumbra social e nunca são alardeados.
Para responder a esta pergunta, gostaria de propor uma reflexão introdutória: por que vemos cada vez menos montagens de Nelson Rodrigues no teatro ou no cinema? Quem aí tem filhos ouvindo Bezerra da Silva?
Sabemos que as novas gerações vêm redescobrindo talentos como Cazuza ou mesmo o fenômeno do rock, Queen e seu vocalista Freddie Mercury, mas, ao mesmo tempo, outros talentos importantes vêm tendo as suas vozes apagadas. Por quê?
Vivemos um momento delicado, em que contratos sociais estão sendo revistos, o que vem resultando em uma vigilância constante sobre o nosso comportamento. Dívidas históricas, por exemplo, passaram a influenciar a forma como expressamos ideias publicamente – ou deixamos de expressá-las – e muito do fenômeno dos cancelamentos se deve ao fato destes novos contratos sociais ditarem o que é politicamente correto dizer ou fazer. Não podemos contestar que grupos humanos foram oprimidos por séculos e, por conta disso, a sociedade precisa lidar com as consequências. Mas, será que, ao patrulharmos em excesso os discursos e o comportamento das pessoas, não estamos nos privando de experiências humanas extremamente enriquecedoras?
Em uma entrevista recente ao New York Times, Tom Hanks declarou que, se fosse hoje, não faria o filme Forrest Gump, pois seria fortemente criticado nas mídias sociais e que, provavelmente, o papel do advogado gay do drama Filadélfia, que lhe rendeu um Oscar, não seria dele, por ser um homem hétero. Seguindo a mesma linha de pensamento, podemos questionar se outras obras-primas da dramaturgia teriam o mesmo espaço hoje que tiveram um dia. Diretores como Stanley Kubrick com o seu controverso Laranja Mecânica ou Quentin Tarantino com os diálogos nada politicamente corretos de Pulp Fiction seriam tão cultuados como foram um dia se fossem lançados nesta terceira década do século XXI?
Por outro lado, a rainha da mídia Oprah Winfrey declarou, em seu famoso e emocionante discurso, na cerimônia do Globo de Ouro de 2018, que novos dias surgiam no horizonte, ao ser a primeira mulher preta a receber o prêmio Cecil B. de Mille, atribuído a quem contribuiu de forma significativa ao mundo do entretenimento. Na fala, Oprah celebra, entre outras coisas, o complexo momento histórico que vivemos, no qual se tornou possível ouvir vozes femininas que se levantam em contraponto a séculos de opressão masculina. “The time is up”, repetiu Oprah diversas vezes. Um grito de “chega” proferido pela mulher no palco de projeção mundial. Um grito há tanto tempo reprimido e, hoje, celebrado.
Vozes finalmente ouvidas, outras silenciadas... tempo interessante este no qual vivemos.
Voltando a Bezerra da Silva, um sambista que cantava a realidade das favelas cariocas sem se importar com a imagem negativa que poderia propagar. O morro de Bezerra tinha mulheres apanhando e bandidos com medo da polícia. Seriam as suas letras o motivo de não ouvirmos mais falar do artista?
“... E eu que fui tolo de uma crioula / Desses tipo violão / Ela jogava baralho de ronda / Bebia cachaça e brigava na mão...”
Nelson Rodrigues, conhecido por suas provocações desconcertantes, estaria sendo apagado por conta de frases como “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”? Será que, ao evitarmos conteúdos como esses, acabaremos por apagar obras como A Vida Como Ela É ou Toda Nudez Será Castigada?
A filosofia pragmatista, corrente que surgiu no final do século XIX nos Estados Unidos, já refletia sobre a possibilidade de a linguagem influenciar o comportamento. O pragmatismo de Charles Peirce e John Dewey evoluiu ao longo do século XX, alargando as fronteiras para além da América do Norte, sugerindo, entre outras coisas, que a escolha consciente das palavras é capaz de transformar o pensamento e, consequentemente, influenciar o modo como as pessoas agem. Há correntes que se opõem a essa ideia, mas parece que a teoria encontra eco nos que defendem que a exclusão de certas expressões ou a mudança no formato de palavras faladas ou escritas contribuirá para uma nova consciência social. Seria esse o motivo do afastamento do convívio com obras polêmicas de grandes artistas brasileiros e estrangeiros? Enquanto o apagamento é gradual e silencioso, o cancelamento tem caráter histriônico, mas ambos parecem ter origem em um fenômeno comum: o mal-estar contemporâneo.
Desde o mal-estar na civilização, de Freud, passando pelo mal-estar da pós-modernidade, de Zygmunt Bauman, até chegar à sociedade do mal-estar, definida pelo sociólogo francês, Alain Ehrenberg, este sentimento foi ganhando diferentes nuances, retratando a evolução da sociedade entre os séculos XX e XXI.
Ehrenberg sugere que, a partir do momento em que desmontamos o passado para questionarmos a família tradicional, a sexualidade, as instituições, as religiões, enfim, tudo, somos chamados a fazer escolhas autônomas o tempo inteiro, uma vez que não aceitamos mais as antigas referências. Ficamos ilhados em nós mesmos, com todas as respostas resumidas às nossas opiniões.
O contrato social que estamos estabelecendo parece reger uma relação entre seres exageradamente autônomos. Somos milhões de “EU.SA”, com opiniões próprias, vivendo em bolhas e lutando para exercer o nosso potencial e ter sucesso pessoal, social e profissionalmente.
E, assim, aos poucos, vamos apagando quem pensa diferente de nós, quem nos incomoda. Vamos apagando grandes obras e grandes artistas. Não seria esse um preço alto demais a pagar pela nossa autonomia?
Ao pensar sobre o mal-estar da pós-modernidade, Bauman afirmou que a liberdade conquistada não produziu necessariamente pessoas mais felizes. Ao concluir a obra Mal-Estar na Civilização, Freud disse que a felicidade não parecia fazer parte dos planos da criação. Talvez esteja na hora de nos conformarmos com o fato de que a felicidade não reside nos contratos sociais e, mais ainda, de sabermos que é absolutamente impossível abafar, negar, impedir ou acabar com as idiossincrasias humanas.
Será que Nelson, Bezerra e tantos outros aqui não citados merecem a permanência no lugar de destaque que conquistaram na cultura do seu tempo? De quais reflexões poderosas estaremos nos privando se forem apagados?
Alessandra Lotufo é diretora de comunicação e inovação da Bossa.etc e board member of directors da Afferolab