Memória & Aprendizagem – parte 2
O fantástico caminho da nossa memória
Por Marina von Zuben
Continuamos com nossa série sobre memória. No texto anterior, aprendemos o que é memória e seus funcionamentos básicos. Agora, vamos falar sobre os processos neurobiológicos. Como nosso cérebro armazena dados? Você já deve ter notado que algumas vezes precisamos nos esforçar para guardar algo, como quando queremos aprender um idioma ou a matéria de um curso. Mas, na maior parte do tempo, o processo de memorizar acontece automaticamente, sem a necessidade de nos esforçarmos ou mesmo que não quiséssemos. Se eu perguntar o que você comeu no café da manhã hoje, você seria capaz de lembrar, embora não tenha tido a intenção de guardar isso. Sempre que vivemos uma experiência, nosso cérebro cria uma forma de representação desse evento, que pode não ser totalmente fiel à realidade. Os estudos sobre o aprendizado trouxeram reflexões também sobre o funcionamento da memória. Desde o início da década de 1970 ficou claro que ela não pode ser vista como um conceito unitário: essa função cognitiva deve ser classificada sob a ótica temporal e de armazenamento das informações, bem como sob a natureza da informação a ser registrada. A arquitetura da memória percorre circuitos de processamentos diferentes no cérebro – e o mesmo acontece quando estamos aprendendo.
Sem aprendizado, sem memória
A aprendizagem está relacionada ao conceito de plasticidade cerebral: a capacidade permanente do cérebro de se modificar conforme interage com o ambiente interno e externo, o que resulta em uma comunicação mais eficiente das redes neuronais. O aprendizado de novas informações permite que as células nervosas façam e desfaçam associações, estimulando o desenvolvimento dessa comunicação. Está aí a base do mecanismo neurobiológico do processo de aprendizagem. Para que esses novos conhecimentos fiquem guardados por mais tempo, dependemos da criação de redes cerebrais que permitirão que essas informações sejam consolidadas, ou seja, armazenadas de forma duradoura. Imagine uma pessoa que conheça apenas os gatos pardos e, de repente, se depara com um gato branco. A nova informação será associada a um registro já existente e pode ficar disponível na mente por algum tempo, porém, se não for repetida, tende a desaparecer da lembrança. Agora, suponha que ao avistar o gato branco, a pessoa tenha ficado curiosa e pesquisado sobre o tema, conversando com outras pessoas ou lendo. Esse envolvimento promoverá a repetição do conteúdo, aumentando as chances de ele ser memorizado. Além disso, estudar o assunto também permitiu a associação do novo conhecimento com registros pré-existentes, como o conceito de animal, quadrúpede, carnívoro, dentre outros relacionados a “gato”. Esse processo mostra como as novas conexões cerebrais acontecem. A constante estimulação e criação de redes de associações tornam o registro mais duradouro. A aquisição de conhecimento sobre o mundo chamamos de aprendizado; o processo pelo qual a informação é codificada, armazenada e evocada, memória.
Passo a passo
A memória segue um processo complexo, que envolve diversos mecanismos responsáveis pela comunicação das redes cerebrais, como também considera os diferentes estágios de processamento da informação: codificação, registro, armazenamento e evocação. Por muito tempo, os esquecimentos foram vistos como falhas de processamento, que teriam impedido o registro ou a evocação da informação armazenada. Atualmente, se sabe que esquecer é um mecanismo importante do cérebro, tendo em vista a necessidade de reter por períodos mais longos as informações verdadeiramente essenciais. Memórias emocionais estão entre as mais fortes e facilmente evocadas, estando entre aquelas com maior probabilidade de se tornarem permanentes. Isso acontece porque as informações interoceptivas (vindas de dentro do organismo, como emoções e motivações) são provenientes do córtex pré-frontal medial, do núcleo acumbens e da amigdala. Elas se projetam para a formação hipocampal e para a região do córtex rinal (áreas ilustradas abaixo). A conexão do hipocampo com essas estruturas garante o desenvolvimento das memórias emocionalmente significativas. A amigdala é a estrutura cerebral envolvida nas respostas emocionais, bem como na formação de memórias emocionais. Existe um processo por meio do qual a amigdala e o hipocampo trabalham sinergicamente para formar os registros que serão armazenados por longos períodos ou por toda a vida, a que chamamos “conteúdo de longo prazo”, ligado aos eventos emocionalmente significativos. Essas estruturas são ativadas após a ocorrência de um evento emocionalmente relevante e se comunicam para gerar o processo de consolidação (retenção) dessas memórias.
Figura 1: O lobo temporal medial consiste da formação hipocampal (azulado), na parte superior, e do giro parahipocampal, na porção inferior. Os córtices entorrinal (rosado) e perirrinal (amarelo) formam as porções medial e lateral, respectivamente, do giro parahipocampal, enquanto o córtex parahipocampal (branco) forma a porção posterior. (Adaptado de Raslau et al., 2014. American Journal of Neuroradiology).
O córtex rinal, por sua vez, discrimina informações novas daquelas das já conhecidas, dedicando menos recursos a essa última. Já o hipocampo desempenha papel crucial na formação e armazenamento de memórias de curto prazo, ligadas a fatos e eventos. Inicialmente, elas são guardadas no hipocampo. Depois, se forem classificadas como relevantes, são transferidas para regiões em que serão consolidadas – associando-se a conhecimentos prévios. É então que o hipocampo conecta elementos significativos desse evento ou experiência, formando memórias permanentes por meio do fortalecimento dessas conexões. Mas o que significa fortalecer essas conexões? O principal processo pela qual essas redes se fortalecem é chamado LTP (long term potentiation – ou potenciação de longa duração). Ele também é conhecido por fazer com que o cérebro se modifique em resposta à experiência, ou seja, plasticidade. A repetição das vivências promove o fortalecimento das conexões entre neurônios, modificando-as ou tornando-as robustas. O Glutamato é o neurotransmissor responsável pela comunicação entre neurônios envolvidos na memorização de informações. Num mecanismo semelhante ao de uma chave com sua respectiva fechadura, o Glutamato se liga aos receptores da célula vizinha, desencadeando mudanças bioquímicas que promoverão o fortalecimento dessas conexões. Esse processo se dá milhares de vezes ao longo do dia. Absorvemos uma quantidade imensa de informação por minuto e boa parte delas vai sendo guardada em nosso sistema. Será que isso não pode sobrecarregar o cérebro?
O papel do esquecimento
Pesquisadores têm estudado o esquecimento como uma forma de “limpar” nosso banco de dados. Boa parte dos trabalhos científicos recentes têm demonstrado que o esquecimento não é um processo passivo, muito menos decorrente de falhas do funcionamento. Esquecer, na verdade, é uma função do sistema nervoso, um mecanismo ativo. A cada experiência, ocorre a “potencialização sináptica”, na qual as sinapses são fortalecidas; mas após algumas horas ou dias, essas conexões retornam à condição anterior (a não ser que a informação se mostre relevante). Por isso, se fôssemos tentar nos lembrar do que comemos no café da manhã há um mês provavelmente não conseguiríamos evocar essa informação. Uma exceção seria o fato de o café da manhã ter acontecido em uma condição excepcional, como em uma viagem, ou na companhia de alguém especial. Da mesma forma, você deve se lembrar o que estava fazendo em 11 de setembro de 2001, quando os aviões atingiram as torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos. Em situações emocionalmente relevantes, especialmente as trágicas, ocorre uma regulação do sistema de alerta, que diminui o funcionamento do sistema de esquecimento. Você se torna capaz de lembrar detalhes daquele dia, com quem estava, o que estava fazendo, e talvez até mesmo o que comeu no café da manhã. Do ponto de vista evolutivo, essa estratégia garante que possamos manter o máximo possível de informações quando estamos diante de eventos potencialmente nocivos à nossa integridade física e/ou emocional, para que possamos evitá-los ou lidarmos melhor com eles no futuro. No próximo texto da série vamos falar sobre os aspectos diários que impactam nossa capacidade de reter informações e habilidades.
Catálogo de memórias
A memória possui subcomponentes e pode ser classificada de maneiras diferentes. Aqui vão algumas subdivisões:
1.
Memória de longo prazo. É o armazenamento de informações de anos ou décadas atrás. Esse sistema engloba a captação de informações em duas dimensões: explícita e implícita. A forma explícita é também denominada “memória declarativa”, pois se refere ao sistema responsável pela capacidade de armazenar, recordar e reconhecer fatos e eventos de modo consciente (declarável). Elas levam tempo para serem consolidadas. Quando evocamos a experiência de uma festa de aniversário ou da infância, por exemplo, o cérebro vai buscar as informações e os eventos pessoalmente vividos em um determinado tempo e espaço. Essas memórias também podem envolver episódios recentes, como o último Réveillon. Essa é uma subdivisão da memória declarativa, denominada memória episódica.
2.
Memória semântica. Responsável por processar informações relacionadas a conhecimentos gerais. Se eu perguntar quem escreveu Dom Casmurro, você se lembraria que foi Machado de Assis? Ou em qual temperatura a água ferve, você se lembraria de que ela deve estar a 100oC no nível do mar? Independente do contexto e do momento em que os fatos, conceitos ou vocabulários foram aprendidos pela primeira vez, essas informações estão relacionadas a outro sistema de processamento da memória. Só conseguimos saber que uma cobra é um animal e, mais especificamente, um réptil, porque temos esse dado guardado na memória semântica. É o mesmo processo pelo qual recordarmos de episódios como o nascimento de um filho, a primeira ida à praia, o significado das palavras, os nomes das cores e a capital do Brasil.
3.
Memória implícita. Ela está relacionada à capacidade de adquirir uma habilidade perceptomotora, de forma gradual, por um processo de aprendizado repetitivo. É daqui que vem a frase: “Isso é igual a andar de bicicleta, uma vez que se aprende, nunca mais se esquece”. A expressão se refere a algo que podemos ficar anos sem fazer, mas conseguimos nos lembrar com facilidade a qualquer momento. Quando precisamos nos recordar de como fazer tal tarefa, fazemos quase sem pensar (de forma implícita), ou seja, sem requer acesso consciente à informação. Trata-se de habilidades que podem ser avaliadas pelo desempenho, são observáveis por meio de ações como tocar piano, jogar tênis, dirigir.
Marina von Zuben é Neurocientista docente e pesquisadora do Hospital das Clínicas da USP, e Chief of Neuroscience and Learning da Bossa.etc